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A Vida Invisível

O título da exposição, que reúne obras de doze artistas portuguesas, tem a sua origem no livro A vida invisível de Eurídice Gusmão[1], da escritora brasileira Martha Batalha.

Este romance relata a história de duas irmãs, através da qual se denuncia uma certa invisibilidade feminina, mais particularmente a das mulheres brancas de classe média do Rio de Janeiro dos anos 1940.

Esta não foi a primeira vez que a curadora, Raquel Guerra, se interessou por estes silenciosos apagamentos. Em 2019, na Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio, Porto, constatou a estranha ausência de referências à própria Marta Ortigão Sampaio, artista e colecionadora, como se o nome do museu mais não fosse mais que uma homenagem a uma «esposa de…», «filha de…». A exposição chamou-se Fazer do fantasma uma pessoa viva e reuniu trabalhos de cinco mulheres artistas.

Até que ponto, o destino deste “fantasma” é o de todas as mulheres, hoje ainda, em Portugal? Pois as artistas parecem não ser imunes a este estado de coisas. Como explicar a sub-representação das artistas mulheres nas exposições de arte, nas coleções tanto públicas como privadas? Poderão os quarenta e oito anos de ditadura justificar todos os atavismos?

O debate, que vem de longe, continuou em Pontault-Combault, arredores de Paris, no próprio dia da inauguração da exposição, entre oito das artistas presentes e a curadora. Se a constatação desta “invisibilidade” não parece ser posta em causa por nenhuma das participantes, já as razões e respostas a esta são mais problemáticas. Falou-se de feminismo e de política, de arte e de história, em português, com tradução simultânea, mas sem consensos instantâneos.

Sem consensos nem concessões poderia ser também um outro título para esta múltipla exposição, organizada em três secções, e que oferece ao público francês um amplo panorama de práticas artísticas, discussões e reflexões. A primeira destas secções «questiona a possibilidade da artista a reconstruir a sua identidade através da auto-representação» e não apenas do «auto-retrato» como a tradução francesa parece indicar. A segunda, questiona-se a condição feminina através da representação de outras mulheres. A terceira parte aborda a questão da representação da invisibilidade. Como falar daquilo que não se vê?.

Na maior parte das obras apresentadas, as artistas trabalham o corpo prosseguindo a tradição artística começada nos anos sessenta. O corpo, o próprio ou alheio, é um objeto de representação ambíguo e problemático já que a própria criação o transforma continuamente. O resultado é muitas vezes político, e até mesmo radical, mas nem sempre. Várias artistas recusam leituras precipitadas e privilegiam uma renovação formal do(s) discurso(s) feminista(s). Apesar destas aparentes discordâncias, em todas, fica patente uma vontade de emancipação, de rotura com a história da representação. As mulheres já não são o mero objeto do olhar masculino: reinventando a visão que tem de si próprias, curto-circuitam, simultaneamente, qualquer redução a não-sujeitos.

Este constante vaivém entre íntimo e universal é bem visível na obra de Rita Castro Neves. Em Marat, fotografia da casa de banho da artista, faz-se referência à pintura de Jacques-Louis David, na qual o revolucionário francês aparece morto na sua banheira. Em Tempos de Medusa. Alopecia Areata a artista revela a sua própria perda de cabelo, consequência bastante comum, sobretudo nas mulheres, de estados de grande tensão emocional. A grande História e os pequenos dramas quotidianos, ou vice-versa, numa ágora doméstica.

O trabalho de Ana Janeiro, fotografias e performances extraídas ou inspiradas em arquivos, permite à artista desvendar o que não é imediatamente visível nas imagens. Em The Archive is present trabalha a partir dos álbuns fotográficos familiares. A condição da mulher no Portugal colonial e a vida das suas avós (maternal e paternal) são reinterpretadas pela artista. O incómodo das poses fotográficas esconde subtis mutilações/limitações do corpo das mulheres? Questões de classe? Uma vez mais, é a grande História – feita corpo e dor pela observação do doméstico – que é posta em cena.

Impossível não pensar no livro The Personal is Political, de Carol Hanisch (1970), observando o trabalho de Bárbara Fonte, que vive e trabalha na idolátrica Braga. A fé que artista afirma ter não a impede de trabalhar de forma crítica os dogmas e símbolos da religião católica, como no caso de Fluxo de intervalos (2016) performance executada no santuário do Bom Jesus. No próprio cartaz da exposição, um retrato da artista com cornos (masculinos?) lança um último olhar ao espectador. Afastando-se, parece abandonar-nos a um ritual de magia, talvez já terminado. A visita à exposição, e às suas múltiplas e contraditórias visões, pode, de facto, ser lida como um esconjuro de uma certa história imposta às mulheres.

A exposição, A Vida Invisível, de Ana Janeiro, Bárbara Fonte, Brígida Mendes, Ção Pestana, Carla Cabanas, Graça Sarsfield, Júlia Ventura, Manuela Marques, Margarida Paiva, Rita Barros, Rita Castro Neves, São Trindade, com curadoria de Raquel Guerra, está patente no Centre Photographique d’Île-de-France (CPIF), Pontault-Combault (Paris), França, até 17 de julho de 2022.

 

[1] Editora Companhia das Letras, Brasil, 2016

Ângelo Ferreira de Sousa (Porto, 1975) é licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e membro fundador da Caldeira 213, um dos primeiros espaços geridos por artistas da cidade. Foi artista residente no Hangar, Barcelona e bolseiro da mesma instituição em mais duas residências: Triangle (Marselha) e Duende Studios (Roterdão); foi igualmente residente no The Window (Paris). Tem trabalhado como tradutor literário para diversas editoras. É membro, enquanto tradutor, da companhia de teatro Artistas Unidos (Lisboa). Escreveu crítica de arte para a revista "Arte Ibérica".

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