La Vue. Deux Objets charment une belle, un amant, un miroir fidele.

Com o objectivo de criar um projecto site-specific para um palácio sem conteúdo nem espólio, iniciei a minha pesquisa nos arquivos da FCG e da CMO. Nestes encontram-se vários registos fotográficos efectuados no palácio. Constatei, no entanto, a ausência de um arquivo visual coerente sobre o seu interior, bem como sobre o seu recheio.

Foi a partir desta ausência/vazio que criei um novo “arquivo”, que incide sobre a vivência e o quotidiano de setecentos.

As cenas desse quotidiano, registadas em painéis de azulejos, no interior do palácio e nos seus jardins, único registo visual da vida naquela época, constituem assim o arquivo imagético da vivência humana no palácio. Assim se iniciou este arquivo fotográfico, que se pretende ser mais do que levantamento ou inventário, mas também uma reinterpretação. O enquadramento dado pela fotografia remete o azulejo para o fotográfico, afastando-o do registo da pintura.

“...uma variedade de cenas-tipo, instantes de uma verdadeira ‘enciclopédia’ da vida social (...) Observando algumas destas imagens é possível tecer considerações sobre um modelo e arquétipo da sociedades portuguesa do século XVIII.(...) ao nível da representação pictórica, numa leitura mais atenta da descodificação (...) a pintura de azulejos, espelho permanente de manifestações e modos de vida, testemunhos de uma ‘arte de bem viver’.”1

Desse “guião do quotidiano da vida privada” que inclui cenas de pormenor e narrativas, elegi aquelas que retratam a intimidade, o lazer e sobretudo o lado feminino, excluíndo por opcção as actividades, na época restringidas ao lazer masculino, como a caça e a pesca, bem como a iconografia mitológica (que nada informa sobre a vida social social naquela época).

Sobressai o papel da Condessa Daun que, vinda de Viena, incluiu a mulher na vida mundana ao abrir a casa à sociedade. Os seus aposentos contêm a sala dos cinco sentidos na qual se encontra o painel que veio a dar o titulo à exposição: A Visão. Dois objectos encantam uma bela, Um amante, um espelho fiel.

Numa época em que imperava a galanteria os gestos eram usados como códigos de comunicação, com o uso do leque, pelas mulheres, e do chapéu, pelo homens, numa linguagem de sedução.

Parte da híper-encenação desta época era também dada pelo vestuário feminino, que obrigava a uma postura e gestualidade muito características, onde os braços nunca se podiam baixar devido às anquinhas das saias. Nesta gestualidade sugere-se uma dança, visível também nos próprios azulejos.

É a partir da construção deste arquivo, em que o enfase é dado às personagens e às acções deste quotidiano, que o projecto artístico é posteriormente desenvolvido e construído, e é através da performance que é interpretado.

"...porque esta fotografia, mais do que qualquer outra coisa, nos fez perceber que o arquivo é teatro, e que a sua testemunha é simultaneamente actor."2

O artista, ao intervir e interpretar o arquivo, torna-se actor, e o próprio arquivo transforma-se no palco em que o actor representa o papel de reescrever a memória. O arquivo contém uma narrativa escondida, e é na tentativa de a contar que o narrador se transforma em actor.

A ligação entre arquivo e gesto tem sido já abordada por Annette Kuhn, no seu trabalho sobre a análise de “memory work”:

"...Este é o meu entendimento de memory work: uma práctica activa de recordar/relembrar com uma atitude inquisitiva perante o passado e a sua (re)construcção através da memoria."3

Os dispositivos visuais utilizados são, por meio da evocação dos gestos existentes neste arquivo, (re)encenados e (re)construídos pela fotografia.

É na abordagem visual do arquivo através da performance que o artista está na posição privilegiada de o interpretar, tendo a liberdade de preencher os silêncios/vazios nele encontrados. Concluindo que o importante não é apenas o que se encontra no arquivo mas também nas suas ausências.

Ana Janeiro

 

1. Câmara, Maria Alexandra T. Gago da. 2005. "A arte de bem viver": a encenação do quotidiano na azulejaria portuguesa da segunda metade de setecentos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. p.142

2. Collective, RM, ‘In The Theatre of Memory: The Work of Contemporary Art in the Photographic Archive.’ 85–95. p.91 tradução livre

3. A Kuhn, Family secrets: acts of memory and imagination, London ;New York, Verso, 2002.p.157 tradução livre

 
 

Um espelho fiel

A exposição La Vue. Deux Objets charment une belle, un amant, un miroir fidele de Ana Janeiro (Lisboa, 1978), toma como ponto de partida o Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras, e o impressionante conjunto de azulejos, da segunda metade século XVIII, que o decoram.

 Bem ao estilo barroco/rocaille, a arquitectura e decoração do palácio, interligam num mesmo programa (arquitectónico, artístico e paisagístico), casa e jardins. A casa abre-se ao exterior pela vista pensada para as suas janelas e traz para o seu interior a paisagem através da sua representação em inúmeros azulejos e estuques. 

1. A escala do arquivo

A exposição começa por nos colocar perante um conjunto de imagens em vitrines, nas quais apresenta um levantamento fotográfico impresso em pequenos formatos, cuja tipologia de registos varia entre, os planos frontais de registo documental, dos espaços do palácio e os pormenores de cenas retiradas do conjunto de azulejos que decoram o palácio. Desta forma a autora contextualiza o local onde estamos, mas leva-nos a uma releitura dos azulejos neles presentes através de uma desmontagem das cenas originais, o que desvia a nossa atenção para novos focos. Esta desconstrução dos painéis, nivela numa mesma escala de importância e tamanho, cenas que viviam originalmente em contextos diferentes, mas que se tornam aqui parte de um mesmo arquivo.

Estas primeiras imagens colocam-nos alerta para olharmos à nossa volta, vislumbrando a sumptuosidade da decoração do palácio e o caracter cenográfico deste espaço e desta exposição.

2. Uma caixa de luz

Na segunda parte da exposição torna claro que estamos perante um jogo de códigos, neste caso a estranheza não advém apenas da presença de uma lanterna, mas do facto de ela nos dar a ver um retrato, no seu espelho. Originalmente a lanterna, seria usada para comunicar (por morse), usando um pequeno espelho no seu interior, para amplificar a sua visibilidade e a da sua mensagem. De forma semelhante também a fotografia se constrói com a luz que entra na máquina fotográfica e regista a imagem projectada numa emulsão (ou sensor digital) fotossensível.

A ideia do fotográfico está sempre presente nestas imagens, podemos por exemplo ver uma cena de um exterior num painel de azulejos, fotografada no interior do palácio, que é contextualizado pela presença de um foco de estúdio na imagem. O espaço reconstrói-se pela presença da luz encenada, e ao dar a ver o próprio processo fotográfico, a autora desmonta a cena e enquadra a sala (o palácio), o painel e o próprio foco no mesmo nível. Mostrando que o que está aqui em causa é tanto a construção visual do fotográfico, como do que é fotografado.

3. A projecção do corpo no espaço

Tendo como base os temas quotidianos frequentemente representados nos painéis de azulejos presentes no palácio (os jogos, a música, as refeições), a fotógrafa recriando algumas cenas recorrendo a objectos chave dos painéis cerâmicos. Como exemplo a sedução do olhar através dos leques (e os seus códigos), o reflexo ao espelho, o gesto das mãos, ou o simples apanhar de uma flor. Pelo meio há também braços que se tocam evocando amantes, saltos suspensos e gestos que lembram danças esvoaçantes de crianças, onde a leveza da idade entra em contraste com o tempo das personagens frente a um espelho. 

 O espelho, além de presente nos próprios azulejos, é dos principais objectos que surge nestas imagens. Normalmente a sua função seria reflectir, ou dar a ver o reflexo, mas aqui o espelho é quase um protagonista por si próprio, para além do seu reflexo. Há espelhos que parecem fazer-nos mergulhar dentro deles, como quem entra na água, ou atravessa uma porta, para o outro lado. E há ainda os espelhos que perderam a capacidade de nos deixar ver.

 Enquadrado pelo ambiente barroco, onde os corpos se movimentam entre os pormenores das cenas e da arquitectura do palácio, há uma personagem feminina que vagueia pelos espaços, da qual vemos apenas sombras. Na relação do seu corpo com o espaço, entrevemos os gestos da sua vivência no palácio, uma dança entre salas e corredores, num convívio quotidiano (humano) com a casa, não com o monumento.

Depois há a luz da janela que se projecta brutalmente nos corpos e nas plantas à noite, reaparece um espelho, mas onde deixou de ser possível ver o seu reflexo, apenas restam os olhos que o miram a pairar sobre a paisagem. Por fim há um reencontro, é como se subíssemos uma escada e voltássemos a casa.

Ana Janeiro constrói assim uma leitura muito pessoal da sua vivência deste espaço, auto encenando-se e projectando a sua reflexão sobre a imagem e sobre a história do palácio neste conjunto de imagens.  Sabemos que toda a fotografia é uma construção, e neste caso é-o através de um espelho.

 Filipa Valladares, Junho 2016

 

(… … …) 

De portas fechadas, não podia recordar o passado. Foi então que entrou na casa, depois de muito tempo, e encontrou os fragmentos de uma existência que lhe pareceu alheia, ao princípio. Montou-os um a um e viu que as peças eram bocados de ela própria. A partir da sua visão, vultos desconhecidos ganhavam forma e vida, como os vários fantasmas de si mesma ocupando o espaço, dançando em torno da memória e dos salões, desdobrando-se multiplicados pelos gestos voláteis e aéreos. 

Movimentos silenciosos contavam o que as palavras não podem a favor do tempo. As mãos tocavam-se para iniciar uma dança. Os corpos encenavam a fantasia intransponível para um plano manifesto. As mãos, as mãos leves que trocavam gestos com o ar, eram as únicas testemunhas de uma vivência interna que jamais viria a ser proferida. As mãos, as mãos de um estranho querendo tocar o corpo de sempre, escondido atrás do reflexo.

Mais tarde, pôde lembrar-se dos cheiros, das sensações… Uma emoção abrupta invadiu-lhe o peito, a vontade comprimida, como se quisesse encontrar, em segredo, o antigo amante escondido num recanto a observar as bailarinas na pausa, colhendo flores num jardim, redobrando a milésima vénia. 

Dentro da casa, as cartas, sem querer, forjavam olhares entrecruzados. O jogo, em forma de leque, ocultava o desejo imiscuído nas entrelinhas de um protocolo. As palavras etéreas, meras fórmulas, essas nunca viriam a servir o tempo. Apenas as mãos, as mãos conheciam os contornos íntimos da história. Apenas esse tacto ficou sempre como prova de contacto de uma vivência sublimada. 

Depois de tanto tempo, eras tu no reflexo do espelho? Reconheceste-me? Pudeste ver como eu era?

Sofia Freire

Imagens